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Um dito popular nos informa que "recordar é viver". Leio-o com ceticismo, afinal a memória é, por natureza, seletiva: dentre suas funções está a de nos ajudar a esquecer as coisas - e não recordá-las. Não fosse assim, pense no seguinte exemplo: imagine-se aos vinte e um anos capaz de se lembrar e atualizar recordações de longas duas décadas... Seríamos uma espécie de "Benjamim Button", um paradoxo existencial, pois seríamos consciências velhas em corpos jovens! Então, retomo o raciocínio: recordar talvez não seja viver, e sim negar a vida presente, é resistir ao tempo. Recordar, portanto, é religar, é atualizar experiências, é retomar uma nova ação em busca de um outro tempo. Um tempo onde o passado passa.
Neste ano de 2014, o Brasil tem a chance de fazer o devido check-up de sua curta democracia: estamos prestes a celebrar o inédito sétimo ritual eleitoral e, além disso, de maneira muito oportuna, temos condições de ouvir nossos intelectuais discutir e qualificar o que foi o Regime Militar. Porém, a pergunta é importante: existem reais condições de um debate qualificado? Quais as reais chances de a caserna abrir e apurar seus arquivos? Com que cara devemos ler as insistentes declarações de "Continência a 1964" presentes na mídia? Se ontem os conservadores estavam bem localizados à margem da sociedade devido à hegemonia cultural da esquerda, que conclusões nos são possíveis hoje frente aos depoimentos dos conservadores que ocupam a base governista brasileira junto com a chamada esquerda?!
Na tentativa de fugir dos ânimos pessoais assolaram o debate público sobre o 1964 nas últimas semanas, gostaria de registrar aqui alguns filmes que trazem à tona as tensões entre memória e história e esclarecem fatos importantes relativos ao Golpe Militar de 1964 e a consequente Ditadura Militar.
1º LADO: A MEMÓRIA SILENCIADA
Joaquim Pedro de Andrade apresenta aquele que talvez é o marco maior da obscenidade do regime militar: a morte e a negação da morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI. A estratégia fílmica de J.P.A é impactante, pois parte para as entrevistas determinando um grande close nas faces dos envolvidos no "caso Vlado". O rosto dos depoentes se tornam paisagens históricas feitas de realidade bruta. Nelas lemos peças de sentimentos do cárcere e identificamos as vozes que ficaras silenciadas décadas. Seguramente, este filme é uma obra maior do documentarismo brasileiro.
2º LADO - A MEMÓRIA MEDIADA
Ao tratar do sequestro de Charles Elbrick em 07/1969, Da-Rin se vale de um recurso potente nas entrevistas: ele apresenta vídeos de época aos envolvidos à medida que desenvolve seus encontros. Dessa forma, o que vemos além das confissões políticas sobre os eventos do sequestro, são justamente as reações espontâneas de alguns entrevistados frente às imagens de época. Elas demonstram como a memória funciona, como nos lembramos daquilo que queremos lembrar, ou melhor, como nós também determinamos o que e como queremos nos lembrar do passado. Enfim, é notável como as imagens de "guerrilheiro" e de "resistência à ditadura" são construídas diante de nós ao longo do filme.
3º LADO - A MEMÓRIA OBSCENA
Esta é para quem tem fôlego: a primeira parte do depoimento de Paulo Malhães à Comissão da Verdade. A partir de uma "lógica eichmanniana", ele logo aos cinco minutos, declara que "sendo militar, a ele não cabia ter escolhas, e sim seguir ordens (...) mesmo porque nunca chegou a pensar nisso (...)". Seguindo este raciocínio imoral, ele desfia sua formação militar, esclarece como "aprendeu a amar a pátria, sobretudo", responde sobre seus contemporâneos nos movimentos anticomunistas e avança rumo aos detalhes das práticas de tortura. Ele esclarece como decidiu "trabalhar no tempo" e, portanto, nunca deixou de "ser um estudioso": estudou técnicas militares norteamericanas e israelenses. Seu depoimento é das raras vozes confessionais que esclarecem as práticas de desumanidade que foram legitimadas e legalizadas pelo regime militar. A maldade se tornou funcional, ordinária e rotineira nas "Casas de Conveniência", os lugares onde se conquistam os presos para que se tornassem infiltrados. Ossos? "Podem esburacar o Brasil inteiro que não vão achar nada (...)"
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CODA: RECORDAR É NÃO VIVER
Silvio Tendler encontrou militares que recusaram a lógica eichmanniana e aceitaram o convite para depor em "Militares que disseram não":
Pode-se ver que recordar também é não querer viver o mesmo jamais.
Abraços,
Profábio.
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